sábado, 24 de abril de 2010

Multiplas Personalidades e Ficção

Pode alguém ter mais de uma personalidade?

Não estou falando de pequenas mudanças de comportamento ou de atitudes contraditórias que todos nós temos. Estou falando de personalidades distintas, estruturadas, que habitam o mesmo corpo e a mesma psique (excluindo aqui as possíveis "mediunidades" ou "possessões").

Robert Louis Stevenson colocou isto na literatura no excelente O Médico e o Monstro, onde o Dr Jekill e Mr Hyde se alternam, mas na realidade são a mesma pessoa. A história foi repetida a exaustão, perdendo seu impacto original. Stvenson criou uma alegoria sobre aquela parte de nós mesmos que não desejamos que os outros vejam, mas que não podemos rejeitar completamente. Até os nomes dos personagens denunciam a ambiguidade: Je (eu, em francês) kill (mato, em inglês) e Mr Hyde (hide = esconder). Quem mata é o Dr. Jekill. Um médico que, em vez de salvar, esconde dentro de si um assassino.

O tema, desde então, jamais foi abandonado. Invadiu o cinema, nas várias filmagens de o Médico e o Monstro, indo ao Psicose de Hitchcock; passando pelo não tão brilhante Eu, eu mesmo e Irene, O Incrível Hulk (não é?), centenas de filmes policiais e de terror B, e pelo excelente Clube da Luta (para mim, o melhor filme deste tipo) e mangás, como no excelente MPD Psycho.

Em psicanálise, o pessoal dá o nome para este distúrbio de "dissociação psíquica" e a define como "funcionamento independente de grupos de processos mentais autônomos que permanecem separados uns dos outros". Nada como um cientista para tirar o glamour da coisa...

Todo mundo faz algum tipo de dissociação. Você por exemplo consegue se imaginar se vendo na tela de uma TV? Pois é, você acabou de fazer uma dissociação.

Quando você está dirigindo você conscientemente faz todos os movimentos necessários para conduzir o veículo? Na realidade você delega a uma parte de você esta tarefa e faz isso "automaticamente". Você está dissociado.

O problema é quando esta dissociação se torna muito complexa e você não consegue o controle sobre ela. Foi o que aconteceu com Eva. Um dos pacientes mais famosos de múltipla personalidade que rendeu um filme excelente: As três faces de Eva (e o Oscar de melhor atriz em 1957 para Joanne Woodward).

Esta paciente procurou ajuda de um profissional por que tinha lapsos de memória (aliás, esta a primeira queixa de pacientes deste tipo). Estes lapsos estavam cada vez mais freqüentes e longos, às vezes abrangendo vários dias.

Durante as sessões, Eva se queixou de ter encontrado roupas "sexy" em seu guarda roupa e não lembrava de tê-las comprado. Pouco a pouco é descoberta uma outra existência de Eva: que os autores chamaram de Eva Blake no lugar da pacata dona de casa (chamada de Eva White), uma provocante dama da noite.

Os psicanalistas que a trataram fizeram um trabalho minucioso, buscando não só tratar da paciente, mas também comprovar o caso de múltipla personalidade. Um trabalho paciente com ambas as personalidades levou a uma riquíssima coleção de dados. Durante o tratamento surgiu uma terceira personalidade, uma mulher equilibrada, que pouco a pouco assumiu o controle das outras duas, tornando-se a face definitiva de Eva.

Um fator interessante é que Eva Blake era alérgica ao nylon enquanto que Eva White não.

O outro caso famoso (que também virou filme e rendeu o Oscar de melhor atriz para Sally Fields em 1976) é o de Sybil, uma mulher de cerca de 40 anos que tinha nada menos que 17 personalidades, inclusive a de um bebe, de uma adolescente e duas masculinas.

O livro relata, num dos capítulos, um evento fantástico. Sybil entra no consultório e resolve mostrar uma carta que recebeu de um homem que não conhecia. Ao abrir a bolsa, a encontra rasgada pela metade. A analista vê uma dramática transformação: Sybil muda a fisionomia, transfigurando-se, alterando inclusive alguns traços físicos de seu rosto e, com muita raiva, rasga a carta gritando: "todos os homens são uns monstros". A analista tinha acabado de assistir diante de seus olhos a transformação de Sybil em outra mulher (seria o mesmo que ver Bruce Banner virar Hulk).

Apesar de raro, este distúrbio é muito dramático, daí seu grande interesse tanto para o estudo psicológico como para a literatura e cinema. A razão para isso é que os casos de múltipla personalidade são como lentes de aumento para nos mostrar as nossas próprias contradições e de como é frágil aquilo que chamamos de "EU".

Neste contexto, a história de Sybil é muito interessante, apesar terem sido lançadas dúvidas em relação ao trabalho da analista (acusada alguns anos mais tarde de ter provocado deliberadamente o aparecimento de muitas das personalidades de Sybil, admitiu esta possibilidade, devido ao forte uso de hipnose e drogas no tratamento). A provável fraude é esquecida pelo grande público. Ficam a história e o filme.

Nerdshop: Clube da Luta, R$ 24,90.

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