quinta-feira, 29 de abril de 2010

Lost, o projeto Dharma e o I Ching

Este artigo foi publicado originalmente no Homem Nerd, em agosto de 2006. Como os números fazem parte de um dos mistérios ainda não resolvidos, vale ainda a teoria.

Lost, o projeto Dharma e o I Ching

Boa parte da trama de Lost está baseada numa seqüência de números que interliga todos os personagens e os eventos da ilha. E entre estes eventos está a descoberta do projeto Dharma. Quem está acompanhando a série sente a onipresença do símbolo associado ao projeto:


O significado de cada um dos trigramas está na tabela a seguir:



Os trigramas combinados dois a dois formam os hexagramas, que é um conjunto de 64 símbolos, numerados de 1 a 64. Notem bem: numerados! Cada um deles tendo uma interpretação total e uma parcial para cada uma das linhas em mutação (o I Ching também é conhecido como o Livro das Mutações). Numa seqüência, o hexagrama seguinte é gerado pela mudança de uma ou mais linhas.

Os números da série Lost são: 4, 8, 15, 16, 23 e 42. Notem que nenhum deles é maior que 64, portanto associá-los ao I Ching não é nenhuma heresia...

Tem outra coisa em Lost que aponta para o I Ching. Os chineses foram os primeiros a dar conta da existência do magnetismo terrestre e o associaram a muitos fenômenos da natureza. Inventaram a bússola (e notem a "coincidência" da disposição dos trigramas com os pontos cardeais) e o Feng Shui, que seria, resumidamente, a ciência do controle do fluxo energético da Terra, em especial do magnetismo (que no Ocidente virou apenas uma maneira de decorar a casa, completamente esvaziado de seu significado original).

Em volta do cisne aparecem usa seqüência de traços abertos _ _ e fechados ___ , compondo ao todo oito símbolos (que por "coincidência" estão na bandeira da Coréia...). Estes símbolos estão associados ao milenar oráculo I Ching. Cada um deles corresponde a um trigrama, formadas por três linhas numeradas de cima para baixo.

A tabela que mostramos a seguir traz a composição dos hexagramas. Números de Lost em vermelho:





A série começa com o número 4. O hexagrama 4 é composto pelos trigramas "Montanha" e "Abismo" (ou Água, dependendo da tradução). Montanha e água representam o quê? (Dou um doce pra quem responder...). Uma ilha! Montanha sobre abismo pode ser interpretado também com um desastre. A interpretação clássica é "Inexperiência Jovem", ou uma grande imprudência.

Interpretação do I Ching:
A Insensatez Juvenil prevalece.
Não sou eu quem procura o jovem insensato, é o jovem insensato quem me procura. À primeira consulta eu respondo.
Se ele pergunta duas ou três vezes, torna-se importuno.
Ao que se torna importuno não dou nenhuma informação.
A perseverança é favorável.

Vamos ao número seguinte:
O Hexagrama 8 é formado por Abismo sobre a Terra, ou Água sobre Terra (um rio). O chineses vêem aqui a simbologia de vários rios afluindo em um ponto só. E interpretam este Hexagrama como solidariedade ou cooperação, necessárias num momento de infortúnio.

A interpretação Chinesa:
Manter-se unido traz boa fortuna.


Indague ao oráculo mais uma vez se você possui elevação, constância e perseverança; então não há culpa.
Os inseguros gradualmente se aproximam.
Aquele que chega tarde demais encontra o infortúnio.

O Hexagrama 15 é formado por Terra sobre Montanha. A terra esconde uma montanha. Os chineses vêem nisso a expressão da Modéstia. Pode significar também um segredo (a terra plana na realidade oculta uma montanha)

Interpretação Chinesa:
A MODÉSTIA cria o sucesso.
O homem superior conduz as coisas à conclusão.
A montanha no interior da terra: a imagem da MODÉSTIA.
Assim o homem superior diminui o que é demasiado e aumenta o que é insuficiente.
Ele pesa as coisas, igualando-as.

O Hexagrama 16 é formado por Trovão sobre a Terra. O trovão é visto pelos chineses como algo que pode despertar o entusiasmo. A queda de um raio pode despertar aquele que estava desanimado.

Agora vejam pra que o entusiasmo seria necessário:
ENTUSIASMO. É favorável designar ajudantes e pôr os exércitos em marcha.

Em tempo: o I Ching foi a maneira que o Rei When, enquanto estava prisioneiro, encontrou para escrever seu plano de fuga, de tomada do poder e de governo, de forma a não despertar suspeitas... Não é à toa que era uma das leituras obrigatórias para os soldados japoneses durante a segunda Guerra e para os revolucionários de Mao...

Agora o porque:
Hexagrama 23. Montanha sobre a Terra. Os chineses vêem um desmoronamento. Descrevem forças inferiores lutando contra forças superiores, usando de subterfúgios e estratagemas escusos solapando a montanha, provocando a sua desintegração. Isso é bom ou ruim? Depende de que lado você está. Será que Jack está na base da montanha solapando-a? Ou são Outros que se utilizam de recursos escusos pra destruí-los?
A interpretação chinesa:
A montanha repousa sobre a terra: a imagem da DESINTEGRAÇÃO. Assim, os superiores só podem garantir suas posições mediante dádivas aos inferiores.

Hexagrama 42.
É formado por Vento sobre Trovão. O significado deste hexagrama foge um pouco da superposição de trigramas, mas considera a própria mutação como importante. A linha mais abaixo do hexagrama é forte, junto com outras duas fracas forma o trigrama inferior. O superior é o contrário, os dois pontos mais altos são fortes e o mais abaixo é fraco. O chineses vêem a imagem de uma barra forte que desceu, tirando a força de cima para pô-la embaixo. O nome do trigrama é Aumento, significando o sacrifício do superior em favor do inferior, pois no fundo, governar é servir.

Vejam a interpretação chinesa:
AUMENTO. É favorável empreender algo.

É favorável atravessar a grande água.

Em outra palavras: é melhor cair fora da ilha...

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Revista Lama n°1

Revista Lama nº 1
Editor: Fabiana Vianna
Lançamento: Outubro 2009
Páginas: 60

Lama
é uma revista pulp especializada em Fantasia, Suspense e Terror. Pulp é um tipo de publicação, surgida nos anos 20, feita com papel barato (aí o nome pulp, polpa), visando principalmente a diversão.

O projeto gráfico procura lembrar uma revista antiga, com as marcas do envelhecimento de suas páginas. Os textos são enriquecidos por ótimas ilustrações.

Este primeiro número é aberto pela fotonovela policial "17:30 e Já é Noite em Curitiba", de autoria de Fabiano Vianna. Fotonovelas foram bastante populares nos 50 e 60, percorrendo as páginas das revistas femininas e algumas publicações exclusivamente voltadas para este tipo de narrativa. "17:30", apesar de resgatar um gênero antigo, busca inovar na linguagem, rompendo o modelo de "quadro a quadro" característico. As cenas se superpõem sem que haja um limite claro entre elas. As falas dos personagens e a narração aparecem como se fossem tecladas numa máquina de escrever. O recurso funciona bem para criar o clima da narrativa, mas algumas vezes dificulta a leitura.

A seguir temos o conto "Teu Sangue em meus sapatos engraxados", de Ana Paula Maia (autora de A Guerra dos Bastardos). Trata-se de um delírio descrito em primeira pessoa de alguém que vaga pela noite. Não temos outra informação a não ser o que ele fala. E fala em monstros que o perseguem e de seus sapatos sujos de sangue. Ao leitor, conduzido pelos desvarios do narrador, só resta imaginar o que poderia estar acontecendo.

Giulia Moon nos brinda com "Gueixa", um conto com sua personagem Kaori. Trata-se de um bem conduzido conto, onde uma gueixa cuida de seu cliente. Um texto levemente erótico, conduzido como se fosse um solo de violino, que de repente é quebrado.

"Mórbidas Confissões", de Assionara Souza, conta a história de um relacionamento tumultuoso entre um estudante e seu avô, que conduzem a uma vingança.

"Dr. Hannibal apaixonado", de Luiz Felipe Leprevost, é uma história de um amor mórbido de um psicopata canibal por sua vítima, contado do ponto de vista do assassino.

Daniel Gonçalves nos conta em "No silencio da mata" a trágica perseguição na Mata Atlântica de alguns excursionistas a um animal aparentemente desconhecido. Desta vez não foi o gato que foi morto pela curiosidade...

"Álbum de Família", de Martha Argel nos conta história de alguém que tem dois pais e duas mães, ou melhor, um pai e o resto...

"O Aleph de Botafogo" de Simone Campos, recria "O Aleph" de Borges no Rio de Janeiro, de uma forma muito bem humorada.

"A Idéia" de Fabiano Vianna, é literalmente a história de uma boa idéia. Como podemos ter certeza de que a idéia que nos encomendaram era realmente boa?

Uma carta que é entregue a um morto é o ponto de partida para o conto "A carta", de Emanuel R. Marques.

Em "O Anjo da USP", de Gisele Pacola, uma conversa entre duas amigas conduz a um relato sobre um violento caso de estupro. E o criminoso pode ser qualquer um.

Fechando a edição há uma pequena coleção de micro e mini contos de Rodriane DL.

Como se pode notar, Lama traz ao leitor realmente uma grande variedade de temas indo do policial à fantasia, passando pelo terror sutil e o horror cru.

Maiores informações, clique aqui

Paradigmas 3

Paradigmas 3
Autor: Richard Diegues (org)
Editora: Tarja
Páginas: 120
Ano: 2009


Sinopse:
Volume 3 da coleção Paradigmas que reúne contos que têm em comum não terem nada em comum (aparentemente).
 

O nome foi escolhido pela Tarja Editorial para justificar este tipo de reunião, tentando romper os limites entre gêneros, em especial, Ficção Científica, Terror e Fantasia. 

A quebra de paradigmas funciona no sentido em que há realmente uma boa amostra de gêneros. 

Entretanto, poucos dos contos presentes em Paradigmas 3 realmente romperam os limites gêneros a que estão presos. Quase todos, sem muito esforço, podem ser classificados num gênero específico, com uma provável exceção do conto de Hugo Vera, "O Homem Bicorpóreo", já publicado na coletânea Solarium, onde a parapsicologia ganha o espaço da magia num conto de FC (os puristas dirão que parapsicologia é também ciência).
Apesar de não terem rompido os limites, os contos são bons, o que indica um cuidado na escolha dos textos por parte de seu organizador, Richard Diegues. Este é um dos mérito desta coletânea, num momento em que no mercado estão surgindo várias coleções sem um cuidado de uma seleção mais criteriosa por parte de seus organizadores.

"Baby Beef, Baby", de Richard Diegues. Um muito bem humorado conto cyberpunk, onde um programador tem que testar um módulo de segurança de um programa que controla um rebanho de gado. O bom humor fica por conta da contextualização "histórica" da situação mundial e porque o gado é tão importante naquele contexto e da maneira como os o personagens navegam no mundo real e virtual.

"O Mito da Fecundação", de Ludimila Hashimoto. Uma fábula onde duas sociedades primitivas dependem uma da outra e uma delas tenta romper com esta dependência apropriando-se do conhecimento da outra.

"Reminiscências de um mundo verde", de Ronaldo Luiz de Souza. Um conto com fundo ecológico, onde somente privilegiados podem possuir um jardim. Apesar da mensagem ser óbvia, a maneira de contá-la é original, sobretudo o desfecho.

"O Animal Morto", Saulo Sisnado. História de Terror, onde uma menina encontra em seu jardim uma carcaça de um estranho animal. Na abertura, o autor nos dá uma pista do que nos espera, pois afirma que tem preferências por histórias onde o monstro é mais explícito.

"Lamentações de Jeremias", de Lúcio Manfredi. Uma ficção científica onde o humor predomina e conta a história de um autor frustrado com um crítico que costumava arrasar suas obras.

"Esperança Corrompida", de Leandro Reis. Fantasia medieval sobre um vilarejo assolado por um demônio que derrota um a um todos os cavaleiros que ousam enfrentá-lo.

"Em Berço Esplêndido", de Camila Fernandes. Num conto narrado como se fosse um artigo de revista ou tópico de livro didático, a autora cria uma lenda como as que costumam povoar as histórias do interior de São Paulo.

"Choque de Civilizações", de Marcelo Jacinto Ribeiro. Fantasia onde predomina o humor, sobre uma invasão involuntária feita por um contador carente de imaginação ao reino dos gnomos.


"Hatzemberg", Davi Gonzáles. Após a morte misteriosa de um colega, um padre é assolado por fortes dores de cabeça, acompanhado de pesadelos com seres que exigem que abandone a religião cristã, toda vez que ministra seus ofícios religiosos.

"A Velha Remington", Wolmir Alcântara. Terror onde um escritor mantém seus originais ocultos porque atribui um poder mágico a uma velha máquina de escrever. Lembra bastante o seriado Além da Imaginação.

"O Cavaleiro e o Senhor do Inverno", de Gianpaolo Celli. Outra fantasia medieval, onde um cavaleiro para honrar o código de conduta, auxilia uma inimiga a salvar seu irmão.

"De Vento e de Pedra", de Viviane Yamabuchi. Fantasia Mitológica sobre o relacionamento de uma fada com uma estátua.

"O Homem Bicorpóreo", de Hugo Vera. FC onde a ciência em foco é a parapsicologia.

Nerd Shop:
Paradimas 3, de Richard Diegues -- Organizador (Tar
ja)

7 Vidas – A aventura de uma pessoa e seus passados

7 Vidas – A aventura de uma pessoa e seus passados
Autores: André Diniz (roteiro) Antonio Eder (desenhos)
Editora: Conrad
Páginas: 124
Formato: 155 mm X 230 mm
Ano: 2009

Sinopse:
André Diniz faz um relato sobre sua experiência com Terapia de Vidas Passadas, a que se submeteu em busca de respostas e de autoconhecimento.

André deixa Santa Teresa, no interior do estado do Rio de Janeiro, e vai morar em Copacabana, onde tem um contrastante contato diário com a violência urbana. Essa experiência faz com que ele mude para Petrópolis, cidade mais tranqüila. Atitude que o faz sentir a necessidade de busca das suas raízes e junto com uma série experiências de devaneios espontâneos o leva a procurar uma terapia. Sua escolha recai sobre a Terapia de Vidas Passadas.

André não está comprometido com seitas ou filosofias reencarnacionistas e, antes de optar pelo tratamento, até tinha restrições quanto a esta forma de pensamento, porém sua terapeuta deu a real dimensão do tratamento: ainda que as vivências relatadas pelo paciente possam não ser reais, são produtos de seu inconsciente e podem ser úteis tanto para um tratamento específico como para autoconhecimento. 

A partir de uma escada imaginária de dez degraus, que o paciente desce simbolicamente em direção a seu insconsciente, é induzido um estado alterado de consciência no qual ele toma contato com uma lembrança que pode ser um fragmento de uma "vida passada", normalmente relacionado com alguns de seus problemas emocionais, mentais ou físicos. No caso de André, um desconforto persistente na sua perna direita é o ponto de ligação entre as várias vidas que vai "relembrando". Fora do consultório, na "vida atual", André começa a resgatar fatos importantes de sua infância e, aos poucos reconcilia-se com ela.

Em suas vidas passadas, algumas apresentam lances dramáticos outra são mais tranquilas. Assume posições em várias classes sociais e traços de personalidades considerados positivos, como bondade e coragem, outros, negativos, como arrogância e sadismo. Algumas vezes foi vítima, outras, algoz. Há até alguns lances onde há humor.

Relatos de terapias tendem a cair ou em uma descrição fria do processo ou em apologia de uma determinada forma de tratamento. André consegue escapar destas duas armadilhas, pois quer apenas contar uma boa história, ainda que seja sobre uma experiência pessoal muito íntima. E consegue. 

O traço limpo de Antonio Eder torna a leitura da HQ bem suave e cativante.

Nerdshop:
7 Vidas: A aventura de uma pessoa em seus passados, de André Diniz e Antonio Eder (Conrad)

terça-feira, 27 de abril de 2010

Distrito 9

Distrito 9 (District 9)
Direção: Neill Blomkamp
Roteiro: Neill Blomkamp, Terri Tatchell
Elenco: Sharlto Copley, Jason Cope, Nathalie Boltt
Duração: 112 minutos

Sinopse:
Uma nave paira sobre a cidade de Joanesburgo África do Sul, sem manter contato. Há uma forte expectativa de que sejam muito evoluídos ou hostis, mas durante três meses nada acontece e o governo resolve agir abrindo a nave, encontrando milhares de extraterrestres subnutridos. A solução é retirá-los de lá e abrigá-los num alojamento provisório. O tempo passa e, sem que haja qualquer solução, aos poucos, o alojamento se transforma numa favela (o Distrito 9). Os alienígenas são segregados e marginalizados. Os problemas aumentam e o governo decide afastá-los da cidade, colocando-os num campo de concentração. 


Narrada na forma de um documentário, a trama de Distrito 9 (District 9) lembra muito o apartheid, regime político que separava negros e brancos na África do Sul até o inicio dos anos 80, quando ação de Nelson Mandela, entre outros, terminou com essa forma de discriminação. Além disso, a favela (que poderia ser qualquer uma de qualquer lugar do mundo) com seus problemas está muito bem retratada, com exploração entre marginalizados: os traficantes nigerianos explorando os alienígenas, com drogas e prostituição, em troca de suas armas. 

Os alienígenas não são simpáticos num primeiro momento aos olhos do espectador. São feios, lembrando baratas crescidas (são chamados pelos humanos pejorativamente de "camarões"), nojentos (sobrevivem revirando lixo, urinam na rua), violentos e individualistas.

O público tende a simpatizar com o protagonista humano, uma espécie de "oficial de justiça" de uma empresa privada, a MNU, que tem de entregar as intimações aos "favelados" para que deixem suas casas. O personagem é um típico "laranja", que mal percebe que na realidade está no comando de uma força militar de extermínio. Não esconde seus preconceitos e até reage com prazer ao ver um ninho de aliens ser queimado. Quando os desmandos vão crescendo e as verdadeiras intenções da MNU aparecem, tanto o personagem quanto o público mudam de postura. 

Mas o filme não é formado apenas por uma trama sócio-política. A luta final para a fuga do Distrito 9 é muito bem feita, não deixando o fã desse tipo de ação insatisfeito. Os alienígenas são muito bem caracterizados e todos eles são criados por computação gráfica de tal forma que temos a impressão que podemos encontrar um deles na esquina. 

Uma excelente ficção científica, que mostra que essa forma narrativa não é apenas "escapismo". 

Para ver o trailer, clique aqui.

Futuro Presente

Futuro Presente
Autor: Nelson de Oliveira (org.)
Editora: Record
Páginas: 416
Ano: 2009



Sinopse:
Antologia de contos de ficção científica organizada por Nelson de Oliveira, que convidou tanto escritores do chamado mainstream (ou "ficção literária") como veteranos do gênero FC.

A intenção claramente manifesta por Nelson de Oliveira em Futuro Presente é provocar o chamado mainstream a buscar renovação na ficção de gênero, sobretudo na ficção científica. Nelson de Oliveira, sob o pseudônimo de Luiz Brás, tem militado no sci-fi e recentemente lançou na sua coluna do jornal virtual Rascunho, o polêmico artigo Convite ao Mainstream, que foi repercutido por Roberto Causo na sua coluna do Portal Terra Magazine em três diálogos com escritores, acadêmicos, críticos e fãs de FC. Em linhas gerais, Nelson de Oliveira, na pele de Luiz Brás, vê o mainstream como estagnado à espera dos "bárbaros" – os escritores de FC, que seriam arautos de uma renovação na literatura. 

Esse livro é parte de seu esforço no sentido de quebrar os limites que separam os dois grupos de escritores. 

Tomando o livro como um todo, podemos dizer que o organizador alcançou seu intento. A maioria dos contos está num nível muito bom e vários escritores do mainstream conseguiram entrar no espírito da coisa. 

Começando por Andréa Del Fuego, em seu conto "Aníbal". No dia do lançamento do livro, ela me confessou que nunca recebeu uma convite para escrever um conto com tantas recomendações traçando o contexto da obra. Andréa conseguiu se sair muito bem usando o recurso de jogar sua história num futuro muito longínquo e num planeta muito distante da Terra. Assim ela pôde imaginar uma evolução da biologia humana e uma raça alienígena com uma biologia própria.
"Nostalgia", de Luiz Brás, vem a seguir. O autor escolheu um mar muito navegado na FC atualmente: a realidade virtual levada a extremos. Num enredo que envolve múltiplas realidades que se superpõe de forma caótica, o autor constrói uma história bem movimenta e emocionante e tenta dar um final surpreendente. 

"A Brand New World", de Luís Roberto Guedes, é um conto com temática ecológica. Como inovação, o autor busca inserir no contexto da ficção científica as profecias catastrófiscas da literatura esotérica mais recente. Uma coisa interessante a notar é que algumas temáticas e a maneira de abordá-las têm alguma correlação coma faixa etária dos autores, como a preocupação ecológica quase panfletária em escritores com idade próxima dos 50 anos, como é este caso. 

Em "Gobda", de Maria Alzira Brum Lemos, encontramos mais uma vez o recurso de lançar para um futuro muito distante a narrativa, tornando plausível toda coisa que se queira, bastando imaginar uma linha evolutiva qualquer. O conto corre num universo habitado por seres inteligentes, os Gobdas, que tem como um de seus propósitos "achar a coisa perdida". Boa parte do conto é dedicada a descrever essa raça ao leitor. O conto é fechado com uma passagem metalinguística onde conta a si mesmo como Ouroboros, a cobra que engole o próprio rabo. No fundo, ouvimos ecos de uma guerra total genocida (outro dos medos da geração com 50 ou mais anos). Os Godbas seriam sobreviventes ou sucessores da humanidade.

"Ausländer", de Mustafá Ali Kanso, é um conto mais dentro dos cânones tradicionais da ficção científica. A presença de um alienígena infiltrado entre humanos é descoberto acidentalmente por um grupo de estudantes (ausländer é a palavra alemã para alienígena). O conto serve para mostrar diversas facetas do relacionamento de um típico nerd e seus colegas e entre ele e seu pai (que também, à sua maneira, é um nerd). O estudante procura o tempo todo se esconder de seus colegas, sobretudo da garota por quem se sente atraído, tentando passar despercebido, exatamente como é o alienígena que acabam descobrindo. Um excelente conto.

"O Vírus Humano 2", de Maria José Silveira, é uma fábula sobre a natureza humana. Outro conto que busca o futuro longínquo para criar o distanciamento necessário e passar o seu recado. A pergunta que este conto propõe é bastante interessante: será que se removermos todas as características do ser humano que o tornam tão destrutivo ele ainda será humano?

André Carneiro, o escritor brasileiro de ficção científica mais velho ainda em atividade, curiosamente nos apresenta o conto "Paralizar Objetivos", onde a ficção cientifica aparece de forma muito sutil. O conto mais parece uma parábola freudiana sobre o princípio da realidade se sobrepondo ao princípio do prazer.

"Descida no Maelstron", de Roberto Causo, é um bom conto de FC hard, escrito à maneira clássica, sobre um velho soldado que talvez não tenha lugar num mundo de paz ou num mundo onde a guerra toma outras direções.

"O Motim", de Edla van Steam, é um parábola sobre um mundo superpopuloso que não admite velhos. Quem reage a isso é justamente o outro extremo, as crianças. Uma boa fábula sociológica.

Deonísio da Silva nos traz "Depois da Grande Catástrofe". O título sugere um ambiente pós-apocalíptico. porém o que importa na narrativa é o drama pessoal vivido pelo reitor de uma universidade, num mundo onde todos são universitários e não há emprego para quase ninguém. Isso não é o que o atormenta, mas seu relacionamento amoroso com sua secretária. O reitor usa como conselheiro o computador da universidade. O que chama a atenção para o conto é o humor um tanto negro.

"Espécies Ameçadas", de Márcio Souza. Este se destaca por ser, na minha opinião, o pior conto da coletânea, apesar da qualidade de seu premiado autor. Expedição em busca de animal misterioso no Amazonas, depara-se com instalações de uma falsa ONG. Dá a impressão de ter sido feito às pressas, como para se livrar de uma atividade penosa. O que é pior numa narrativa de mistério (que é o que este conto pretende ser) é tê-lo explicado por um personagem ou pelo narrador sem que o leitor tenha tido a chance de ao menos acompanhar seu desenrolar. Todavia, há um mérito: o de colocar para o leitor a discussão da presença de ONGs estrangeiras em território brasileiro sem que se saiba o seu real propósito.

"História de uma Noite", de Charles Kiefer, conta uma história de amor em que se mistura realidade virtual com o mundo real. É contado em tom de confidência, como o relato de um blog, mas sob um censor automático implacável que corta descrições mais apimentadas, fazendo com que o leitor tenha vontade de esganar esse censor, se ele tivesse um pescoço.

"As Infalíveis H", de Paulo Sandrini. Um mundo povoado por humanos tem sua realidade subitamente perturbada quando uma nave aparentemente alienígena é derrubada pelo sistema de defesa do planeta. Um estudante descobre fuçando um dos arquivos encontrato um fato que o deixa aterrorizado. Um bom conto com um bom final.

"Resquiescat in Pace", de Hilton James Kutska, nos fala de robôs humanoides deixados pra trás na Terra, que esperam pela volta de seus antigos amos. Muito bem escrito, foge do lugar comum ao tratar da questão ecológica.

"Vladja", de Ivan Hesemberg, é um conto de amor e morte, muito bem escrito. Mas, se tirarmos alguns elementos, colocados apenas para aproximação como gênero, não seria um conto de ficção científica e a história não sofre com isso. Apesar de ter fugido à proposta, é um bom conto.

"A Máquina do Saudosismo", de Ataíde Tartari, nos conta a história de um homem que foi congelado no século 21, sem ter esperanças de ser descongelado, mas que acorda num mundo futuro ao qual não consegue se adaptar. Uma metáfora bem construída sobre a inadaptação de algumas pessoas às mudanças tecnológicas que as cercam.

"Ponto Crítico", de Carlos André Mores, é uma boa ficção científica hard. Um grupo de cientistas tenta fundir num experimento as experiências de controle mental da tradição hindu com a física quântica, com resultados inesperados.

Finalizando, temos "Onde Está o Agente?", de Rinaldo Fernades. Um homem encontra um delegado que pergunta por um agente. A partir dali, suas tentativas de voltar para casa ou de se encontrar com uma mulher atraente, que vê a poucos metros de si, fracassam irremediavelmente e o delegado cruza seu caminho a todo momento. Apesar do cenário futurista que o autor mistura com cenas de cidade grande do presente, o conto é o que pode ser chamado de "absurdista". Durante a leitura o que dizemos a nós mesmos o tempo todo é "mas isso não pode ser!"

De uma maneira geral, percebe-se uma tentativa dos autores tradicionalmente ligados ao mainstream tentarem se aproximar do gênero, alguns conseguindo plenamente, outros contornando-o. Com uma única exceção, os contos são de bons para ótimos. O tema que mais se repetiu foi o ecológico, colocado de maneira explícita por alguns (até de maneira catastrofista e panfletária) e indireta por outros. Isso é reflexo tanto do momento em que estamos vivendo, como por este discurso ter permeado a formação dos autores na faixa de 40-50 anos, que viveram a Guerra Fria (daí a fixação pela catástrofe) e conviveram com as mensagens do Greenpeace e grupos similares. 

Nerdshop:
Futuro Presente, Nelson de Oliveira (org.) (Record)

segunda-feira, 26 de abril de 2010

O Homem do Castelo Alto

O Homem do Castelo Alto
Autor: Philip K. Dick
Editora: Aleph
Ano: 2006
Páginas: 300

Sinopse:
Estamos nos anos 60. A Guerra Fria é o pano de fundo para a ação. Há espiões, refugiados políticos, pessoas separadas por uma fronteira imposta num país dividido. A esperança está num livro que mostra como tudo isto pode ser diferente: O Gafanhoto torna-se pesado.

Um romance de espionagem à 007? Como tudo que Philip Dick escreve, parece, mas não é. Há uma diferença: o país dividido são os Estados Unidos e a Guerra Fria é entre Japão e Alemanha.

Trata-se de uma realidade alternativa onde os países do Eixo ganharam a Segunda Guerra Mundial. O Estados Unidos, derrotados são divididos entre os japoneses, que tem uma postura mais aberta e os alemães, que mantém sua política de extermínio aos judeus e seu expansionismo bélico.

Paralelamente, um escritor de ficção científica americano escreve um romance alternativo (O Gafanhoto torna-se pesado) onde descreve uma realidade em que os Aliados ganham a guerra e impõe uma derrota ao Eixo.

Pode-se considerar este romance como precursor do gênero do steampunk, da mesma forma que Blade Runner (também de Phlip Dick) é precursor do cyberpunk. Porém, eu prefiro considerar que este é um romance de ficção científica onde a ciência é a História.

Um importante personagem é o onipresente I Ching, o Livro da Mutações, o oráculo milenar chinês. Como parte da dominação cultural japonesa, o I Ching aparece muitas vezes nas mãos de personagens das mais diversas etnias, apontando os rumos dos acontecimentos, dando conselhos não muito claros, mas que influenciam muitas decisões.

O I Ching tem o mesmo problema das analises históricas: tudo se encaixa quando analisamos retrospectivamente, depois que a profecia aconteceu, ou quando contamos a História passada do ponto de vista presente. Uma saída para este impasse é uma fazermos uma analise dentro dos conceitos de História Contrafatual: "o que aconteceria se..." É o que faz Philip Dick neste romance, e o I Ching não está ali por acaso, como para nos lembrar do vício de raciocínio das análises históricas tradicionais.

Considerado por muitos como o melhor romance de Philip Dick, O Homem do Castelo Alto é uma leitura divertida e intrigante, deixando-nos com uma sensação de estranhamento nos acompanha muito tempo após a sua leitura. 

Nerdshop
O Homem no Castelo Alto, de Philip K. Dick (Aleph)

O Diário de Bordo de Phileas Fogg

O Diário de Bordo de Phileas Fogg (The Other Log of Phileas Fogg)
Autor: Philip José Farmer
Tradutor: Marisa Gomes
Editora: Francisco Alves
Páginas: 236
Ano: 1987

Sinopse:
Ao se ler A Volta ao Mundo em 80 dias, de Julio Verne, percebe-se algumas incongruências na trama, que só teriam sentido se Julio Verne na realidade estivesse ocultando uma outra história, mais fantástica que uma simples circunavegação no mundo em tempo recorde. 

Atenção, contém spoilers!

O autor Philip José Farmer em O Diário de Bordo de Phileas Fogg imagina uma trama onde Paspartout e Fogg são na realidade extraterrestres infiltrados no nosso planeta, os Eridaneans, em eterna guerra com seus inimigos, os Capellans, ao qual Fix está subordinado.

Neste contexto, só pode aproveitar bem o livro quem conhece a trama original de Julio Verne e não ser fanático para acompanhar o romance e suportar a iconoclastia feita ao autor de A volta ao Mundo em 80 dias, como a alguns personagens (Nemo, sobretudo) e a alguns romances mais conhecidos, como Vinte Mil Léguas Submarinas e A Ilha Misteriosa. Tudo isto carregado com um humor inteligente. Ao final um "ensaio" coloca Sherlock Holmes no mesmo contexto da guerra entre alienígenas.

Uma boa e corajosa idéia, sem dúvida. Porém com um grande defeito. Farmer optou por criar um distanciamento inicial, colocando a narrativa nas mãos de um personagem que era um pesquisador isento. Este personagem foi quem teve acesso a partes do diário de Phileas Fogg. Ao narrar como uma reportagem ou ensaio, torna o texto artificial demais e a leitura aborrecida. O autor se solta um pouco mais no ultimo terço da narrativa, mas alguns leitores já teriam abandonado a obra bem antes.

O contexto vitoriano e o uso de personagens conhecidos da época transforma este livro em precursor do gênero Steampunk, uma vez que foi escrito em 1973, cerca de 20 anos antes da eclosão deste movimento dentro da literatura de Ficção Científica. 

Em suma: uma boa idéia mal realizada, mas importante por ser precursora do movimento Steampunk.

domingo, 25 de abril de 2010

Psicomagia

Psicomagia

Autor: Alejandro Jodorowski

Tradução: Sueli Farah
Editora: Devir
Páginas: 296
Ano: 2009

Sinopse: Alejandro Jodorowski – cineasta, teatrólogo, roteirista de quadrinhos, poeta e místico –, baseado em sua experiência pessoal, na psicanálise, em técnicas terapeuticas e em várias doutrinas místicas e religiosas, desenvolveu uma nova forma de terapia, que deu o nome de psicomagia. O livro tenta sistematizar, por meio de uma série de entrevistas com o autor, esta nova técnica.

Alejandro Jodorowski é bastante conhecido pelo seu trabalho como cineasta e roteirista de quadrinhos. Sua trilogia Incal deu origem a um universo fantástico, com vários desdobramentos e obras paralelas.

No livro Psicomagia em particular, o autor afasta-se de suas atividades mais conhecidas para enveredar-se por outra arte, como ele mesmo classifica, a arte de curar. Sua experiência começa nos anos 60 e 70, com primeiro atos poéticos e, a seguir, teatrais. Esses atos tiveram origem em uma preocupação em caracterizar o ato poético como algo desprovido de significado, ou pelo menos do signifcado das verdades pré-estabelecidas. Ele cita como exemplo, a ação de andar em linha reta sem contornar obstáculos (se surgir uma árvore no caminho, sobe-se na árvore, descendo do outro lado), sem qualquer motivo aparente.

O ato teatral estaria na desconstrução do teatro onde não existe peça nem qualquer distinção entre atores e público. A esse tipo de teatro Jodorowski dá o nome de "Teatro Pânico". Nele, todos são convidados a fazerem em público aquilo que desejarem, dando origem a um processo catártico. Como exemplo disso estão os hapennings. Comuns nos anos 60 e 70, eram espetáculos teatrais feitos em locais públicos, como, por exemplo uma estação de metrô, sem roteiro pré-determinado.

O ato seguinte é o que ele chama de ato onírico, este diretamente inspirado em três fontes básicas: a psicanálise, a arte surrealista e tradições místicas. Consiste no chamado "sonho lúcido", no qual o sonhador sabe sua condição e assume o controle de seu sonho. Pode também adotar o mesmo distanciamento na vida real, supondo estar num sonho e estabelecendo uma interpretação simbólica para seus atos do dia a dia.

Por fim o ato psicomágico, que seria uma prescrição de uma ação que deve ser executada pelo paciente da exata maneira prescrita pelo terapeuta. A ação, de caráter extremamente simbólico, seria capaz de romper com determinados paradigmas do paciente, realizando assim a cura. O ato psicomágico é diretamente inspirado nas ações de curandeiros e xamãs. Jorodowski chegou a tornar-se assistente de uma curandeira no México para aprender sua técnicas.

Apesar do esforço do autor e de seus entrevistadores em tentar captar o método da psicomagia, o livro falha no sentido de que Jorodwiski construiu – ao longo de várias décadas – uma escada para ele subir e esta escada foi destruída. Se quisermos ser psicomagos, devemos construir uma nova escada.

Todavia, a leitura do livro é interessante, quer queiramos ou não ser psicomagos. Jodorowski está ali por inteiro, e podemos conhecer bastante sobre sua vida e sua maneira de pensar. Em especial, no final do livro onde ele dá um curso rápido de criatividade. Os exercícios que ele propõe abrem bastante a mente de quem levá-los a sério.

sábado, 24 de abril de 2010

Multiplas Personalidades e Ficção

Pode alguém ter mais de uma personalidade?

Não estou falando de pequenas mudanças de comportamento ou de atitudes contraditórias que todos nós temos. Estou falando de personalidades distintas, estruturadas, que habitam o mesmo corpo e a mesma psique (excluindo aqui as possíveis "mediunidades" ou "possessões").

Robert Louis Stevenson colocou isto na literatura no excelente O Médico e o Monstro, onde o Dr Jekill e Mr Hyde se alternam, mas na realidade são a mesma pessoa. A história foi repetida a exaustão, perdendo seu impacto original. Stvenson criou uma alegoria sobre aquela parte de nós mesmos que não desejamos que os outros vejam, mas que não podemos rejeitar completamente. Até os nomes dos personagens denunciam a ambiguidade: Je (eu, em francês) kill (mato, em inglês) e Mr Hyde (hide = esconder). Quem mata é o Dr. Jekill. Um médico que, em vez de salvar, esconde dentro de si um assassino.

O tema, desde então, jamais foi abandonado. Invadiu o cinema, nas várias filmagens de o Médico e o Monstro, indo ao Psicose de Hitchcock; passando pelo não tão brilhante Eu, eu mesmo e Irene, O Incrível Hulk (não é?), centenas de filmes policiais e de terror B, e pelo excelente Clube da Luta (para mim, o melhor filme deste tipo) e mangás, como no excelente MPD Psycho.

Em psicanálise, o pessoal dá o nome para este distúrbio de "dissociação psíquica" e a define como "funcionamento independente de grupos de processos mentais autônomos que permanecem separados uns dos outros". Nada como um cientista para tirar o glamour da coisa...

Todo mundo faz algum tipo de dissociação. Você por exemplo consegue se imaginar se vendo na tela de uma TV? Pois é, você acabou de fazer uma dissociação.

Quando você está dirigindo você conscientemente faz todos os movimentos necessários para conduzir o veículo? Na realidade você delega a uma parte de você esta tarefa e faz isso "automaticamente". Você está dissociado.

O problema é quando esta dissociação se torna muito complexa e você não consegue o controle sobre ela. Foi o que aconteceu com Eva. Um dos pacientes mais famosos de múltipla personalidade que rendeu um filme excelente: As três faces de Eva (e o Oscar de melhor atriz em 1957 para Joanne Woodward).

Esta paciente procurou ajuda de um profissional por que tinha lapsos de memória (aliás, esta a primeira queixa de pacientes deste tipo). Estes lapsos estavam cada vez mais freqüentes e longos, às vezes abrangendo vários dias.

Durante as sessões, Eva se queixou de ter encontrado roupas "sexy" em seu guarda roupa e não lembrava de tê-las comprado. Pouco a pouco é descoberta uma outra existência de Eva: que os autores chamaram de Eva Blake no lugar da pacata dona de casa (chamada de Eva White), uma provocante dama da noite.

Os psicanalistas que a trataram fizeram um trabalho minucioso, buscando não só tratar da paciente, mas também comprovar o caso de múltipla personalidade. Um trabalho paciente com ambas as personalidades levou a uma riquíssima coleção de dados. Durante o tratamento surgiu uma terceira personalidade, uma mulher equilibrada, que pouco a pouco assumiu o controle das outras duas, tornando-se a face definitiva de Eva.

Um fator interessante é que Eva Blake era alérgica ao nylon enquanto que Eva White não.

O outro caso famoso (que também virou filme e rendeu o Oscar de melhor atriz para Sally Fields em 1976) é o de Sybil, uma mulher de cerca de 40 anos que tinha nada menos que 17 personalidades, inclusive a de um bebe, de uma adolescente e duas masculinas.

O livro relata, num dos capítulos, um evento fantástico. Sybil entra no consultório e resolve mostrar uma carta que recebeu de um homem que não conhecia. Ao abrir a bolsa, a encontra rasgada pela metade. A analista vê uma dramática transformação: Sybil muda a fisionomia, transfigurando-se, alterando inclusive alguns traços físicos de seu rosto e, com muita raiva, rasga a carta gritando: "todos os homens são uns monstros". A analista tinha acabado de assistir diante de seus olhos a transformação de Sybil em outra mulher (seria o mesmo que ver Bruce Banner virar Hulk).

Apesar de raro, este distúrbio é muito dramático, daí seu grande interesse tanto para o estudo psicológico como para a literatura e cinema. A razão para isso é que os casos de múltipla personalidade são como lentes de aumento para nos mostrar as nossas próprias contradições e de como é frágil aquilo que chamamos de "EU".

Neste contexto, a história de Sybil é muito interessante, apesar terem sido lançadas dúvidas em relação ao trabalho da analista (acusada alguns anos mais tarde de ter provocado deliberadamente o aparecimento de muitas das personalidades de Sybil, admitiu esta possibilidade, devido ao forte uso de hipnose e drogas no tratamento). A provável fraude é esquecida pelo grande público. Ficam a história e o filme.

Nerdshop: Clube da Luta, R$ 24,90.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Clube dos imortais

Clube dos Imortais. A Nova Quimera dos Vampiros 
Autor: Kizzy ysatiS
Editora:Novo Século
Páginas: 312
Ano: 2006

 Sinopse: Há 150 anos num baile de carnaval uma dama misteriosa cativa sem querer um jovem pierrot. Esta dama e Álvares de Azevedo serão a causa de uma grande frustração a este jovem. Em São Paulo do século XXI, Luciano um jovem estudante andando sob a forte chuva encontra um gótico acompanhado de um gato negro. Este encontro o fascina e assusta e será apenas um prenuncio do que virá.


Não é preciso ser muito esperto para perceber que o gótico que Luciano encontra é um vampiro e a primeira pergunta que surge, pelo menos para quem vai resenhar, é: no meio de uma grande onda de obras sobre vampiros, será que este é "apenas mais um"?

Logo percebemos que não.

Em primeiro lugar, a ambientação muito bem contruída em uma cidade brasileira como São Paulo faz com que o vampiro se torne um elemento possível e que pode ser encontrado enquanto estamos esperando ônibus após uma balada. E Kizzy ysatiS faz isso muito bem, sem que seja artificial. Ele até brinca com isso, quando a possível vítima reclama que o vampiro só tem 177 anos.

Em segundo lugar, está o jogo da ambiguidade, começando com o baile de carnaval onde nada é o que parece ser, a sala de chat onde góticos fingem ser vampiros e encontram um vampiro que finge ser gótico, o nome "Luar" que não permite de imediato saber se quem está teclando é um homem ou uma mulher e por fim as reviravoltas do enredo, onde não sabemos quem é vítima de quem, até o trágico desfecho, quando percebemos que todos são vítimas.


Os personagens são muito bem construídos, o vampiro, ao mesmo tempo assustador, sedutor e melancólico, obcecado com a busca do "esperado"; a "sibila rubra", uma feiticeira vidente, amarrada ao vampiro por um compromisso de gerações, que é impossível de ser saldado; Luciano, o jovem que hesita entre uma vida medíocre e seu talento artístico; o lobisomem Fausto, com uma real fidelidade canina ao seu mestre.

O livro apresenta três pontos de grande intensidade narrativa: a luta da sibila rubra com o vampiro, o jogo de sedução do vampiro no cemitério da Consolação e a luta final, onde ainda ocorre uma última reviravolta.

Merecem ainda destaque a cena da aparição e exibição do vampiro na casa noturna "Madame Satã" e o ataque dos incúbos e súcubos a uma vítimas.

Como mérito adcional está a narrativa dentro da história do Brasil, envolvendo figuras como a Marquesa dos Santos, Dom Pedro I e II e, principalmente, Álvares de Azevedo e seu personagem Macários.

Como ponto fraco está uma questão de estilo: na tentativa de arcaizar o texto, Kizzy usa uma inversão da colocação dos adjetivos (em vez de cabelos rubros, rubros cabelos). Isso funciona bem em alguns trechos, mas em outros, não, tornando-se por vezes cansativo e afetado. Porém, quando o romance avança, percebe-se que este recurso vai aos poucos sendo abandonado e o estilo tornando-se mais fluido. Como se trata do primeiro romance do autor, o que provavelmente está ocorrendo é uma evolução no seu modo de escrever, ao longo do livro.

Um bom livro sobre vampiros ambientado no século XXI sem que se perca sua aura tenebrosa e ao mesmo tempo sedutora.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Incal

O Incal
Autores: Alejandro Jodorowsky (roteiro) e Moebius (arte)
Editora: Devir
Ano: 2006 e 2007

Sinopse: Uma saga. No mais abrangente sentido da palavra. A jornada do Herói com todos os elementos descritos por Joseph Campbell (o genial mitólogo, consultor da trilogia original Star Wars –Guerra nas Estrelas), presentes nos mais variados mitos das mais variadas culturas.

John Difool é um personagem típico das sagas do herói tolo (não é à toa que se chama Di-fool), que aparentemente por acidente, mas na realidade por destino, se depara com uma grande aventura, muito maior do que ele próprio (e o leitor) supõe, atingindo níveis cada mais abrangentes e profundos.

Ele não é o exemplo de persistência nem de nobreza de caráter, pois várias vezes pensou em abandonar seus amigos, tirar vantagens pessoais etc., dando uma dimensão humana e consistente ao personagem. Todavia ele sofre modificações importantes durante a trama, passando duas vezes pelo desmembramento e remembramento (outra referencia mitológica universal, usado até mesmo no filme dOs Simpsons).
Difool é diretamente inspirado no Louco do Tarot, e segue os passos na tradição de Percival, o mais tolo dos cavaleiros que por fim encontra o Graal (ou seria o Incal?).

O Incal seria um objeto mágico capaz de transformar quem o toque dando um poder incrível, por isso ambicionado por seres de toda a galáxia. Este objeto vai parar por "acaso" nas mãos de Difool, um detetive de enésima categoria, amoral, tendo como único valor seu próprio bem estar. Logo ele descobre que o que pegou por acaso e do qual espera auferir lucros é algo que lhe trará além de um poder imenso, muita encrenca.

Seu companheiro inicial de Jornada é Deepo, uma ave que fará o papel do cão que guarda o Louco, representando o instinto de sobrevivência, nem sempre seguido pelo herói. Outros arquétipos serão encontrados, vividos pelos mais diversos personagens, numa clara influência junguiana, que engrossaram suas fileiras, um comando formado por diferentes caracteres (lembram-se da Sociedade do Anel, Obi-wan, Luck, Hans Solo, C3PO e R2D2, os Goonies ou os cavaleiros da Távola Redonda?):

Meta-Barão: Um mercenário com um poder muito grande, que havia renunciado a vida de lutas. Representa a coragem e sangue frio, necessários para conduzir o grupo sem perder o objetivo em foco.
Tanatah: Inimiga do Meta-Barão, de quem seqüestrou o filho, para conseguir o apoio necessário a sua jornada particular em busca do Incal Negro (objeto complementar ao Incal, teoricamente representando "o lado negro da Força"). Observe seu nome: qualquer semelhança com Tanus ou Tanatos – Deus da Morte – não é mera coincidência.
Solune: Filho do Meta Barão guarda dentro de si o poder do Sol e da Lua, a capacidade de ver além da luz e das trevas. Terá papel fundamental na trama, representando por vezes o papel do Sol ou da Lua do Tarot, e também o Mundo, simbolizando a união de opostos de forma harmônica.
Animah: Representa o arquétipo feminino puro (o Anima Junguiano), controladora do inconsciente, representado por um subterrâneo habitado por ratos gigantescos, dos quais ela é rainha. Veste-se com muito pouca roupa, despertando o desejo de Difool.
Matador: Um homem com cabeça de Lobo, representando o instinto selvagem, muitas vezes necessário para enfrentar forças descomunais.
Os inimigos também representam aspectos junguianos e tarológicos, mostrando o profundo conhecimento dos autores destes aspectos (Jodorowsky é conhecido por suas incursões no cinema surreal).

Prezidente: Arrogante, egocêntrico e fútil. Representa o Ego, ou eu menor na tradição mística. Preocupa-se apenas com a aparência e como ele aparece na Holovisão (espécie de divertimento que mantém mais de 80% da população sobre controle – qualquer semelhança com a TV aberta...) do que realmente governar. Seu alheamento da realidade é tal que não percebe que seu palácio está sob ataque.

Tecno-papa: Tem o controle sobre o Incal Negro e representa as forças do "mal", seu arquétipo é o lado negro do Papa. Sua base é a Tecno-cidade e representa a Torre do Tarot.
Finalizando cabe ressaltar a figura do/da Imperador/triz, que controla este mundo como um real governante. Este personagem é a fusão de três arquétipos: O Imperador, A Imperatriz e o Mundo. Seu objetivo é comandar o mundo pela luz, em oposição às trevas, que o Tecno–papa tem a pretensão de libertar e controlar.

A função de Difool e de seu grupo é evitar a todo custo que as trevas dominem a galáxia e talvez todo o Universo, dando um caráter cosmológico à busca do herói. Só poderá enfrentar as trevas quem conseguir descobrir a verdadeira essência do lado escuro do Universo.

Na realidade a busca de Difool e de qualquer herói é a nossa própria busca interior, onde como missão principal devemos ver qual é a nossa verdadeira natureza e enfrentar as nossas trevas interiores, descobrindo nossa real essência.

Anti-spoiler: 

Não leia as introduções, orelhas e contracapas antes de ler toda a saga!

Nerdshop:
Incal, V1, de Alejandro Jodorowski (Devir)
Incal, V2, de Alejandro Jodorowski (Devir)
Incal, V3, de Alejandro Jodorowski (Devir)

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Portal Stalker

Ficha Técnica

Portal Stalker

Autores: Nelson de Oliveira (org), Brontops, Ivan Hegenberg, Luiz Brás, Marco Antonio de Araujo Bueno, Maria Helena Bandeira, Mayrant Gallo, Roberto de Sousa Causo, Rodrigo Novaes de Almeida, Sérgio Tavares e Tiago Araújo
Editora: Daikoku
Ano: Outono de 2009
100 páginas

Sinopse: Portal Stalker é o terceiro número do Projeto Portal – coordenado pelo escritor Nelson de Oliveira, em que um grupo de escritores é convidado a escrever um ou mais contos de ficção científica ou generos afins para comporem um "Portal", que leva o nome de um livro famoso de Ficção Científica. Neste terceiro número o livro homenageando é Stalker, de Stanislaw Lem e dez autores escrevem 18 contos.

A revista Portal Stalker em suas páginas abarca diversos gêneros, contendo de uma aventura quase estereotipada de FC Hard, "Fênix: Missão Urano" de Rodrigo Novaes de Almeida, passando por um bom conto de Cyberpunk, "O Novo Protótipo", de Roberto de Sousa Causo, adquirindo contornos poéticos nos contos de Maria Helena Bandeira ou de puro nonsense nos contos de Marco Antonio Bueno e Tiago Araújo.

O primeiro conto é "No Jardim" de Mayrant Gallo, onde um fazendeiro encontra um alienígena em seu quintal e o prende em uma gaiola. É uma pessoa comum diante de um acontecimento incomum, que não sabe muito bem como agir. Bem conduzido, com um bom final.

"O Novo Protótipo", de Roberto Causo, nos coloca diante de um assassino pago em busca de sua vítima, num bairro da Liberdade (São Paulo) futurista. Boa construção de personagens e tecnologias.

"Ontem Ferido" é um conto fantástico narrado de uma maneira muito especial por Maria Helena Bandeira. O que me chamou a atenção foram as cores assumirem o papel de objetos, criando um clima muito bom para o desenvolvimento da história. Em "Alguém que fui", conto seguinte da autora, o enredo narra de maneira original um velho paradoxo.

Sérgio Tavares nos traz "Sagrado", que conta com muito humor o uso empresarial da religião.

Brontops nos trás três contos: "Kripton", a última noite da Terra antes do apocalipse. "Os Quereres", sobre a eterna questão das preferencias dos pais pelo sexo do filho que vai nascer, numa sociedade com tecnologia muito avançada, mas que no fundo ainda guarda velhos papeis comportamentais padronizados para homens e mulheres. "Buraco no Céu ou 22 de Dezembro de 2012", um conto com ares apocalípticos de uma invasão alienígena, com final inesperado.

A seguir, temos "Wharias Avariada", de Marco Antonio Bueno, um conto pós-humano bem humorado.

No conto seguinte do mesmo autor, o nome "Nonsensal" diz exatamente o que esperar dele: apenas nonsense.

Marco Antonio ainda assina "Holograma", onde um Pigamilião pós-moderno cria uma companhia "perfeita".

E, em "Tempo Virtual, Mate Real", o autor nos conta num lance de humor nonsense uma invasão executada pelo "Senhor".

Tiago Araújo mantém o tom do nonsense, criando caricaturas de comportamentos da sociedade pós moderna. Em "Artigo 15.720", toda a sociedade aparentemente está empenhada em fazer um produto que é extraído da própria pele dos cidadãos. Em "Artigo 16.831", os casais usam paredes de acrilico transparente pra mantê-los isolados um um do outro. E em "Artigo 20.053" as relações dos humanos com os anjos são dissecadas.

"Fenix: Missão Urano", de Rodrigo Novaes de Almeida, é um conto tradicional de Ficção Cintífica Hard, contendo alguns clichês do genero, talvez postos de propósito pelo autor. As referencias ao filme Armagedon são tão claras que chegamos a ver o Bruce Willis no meio dos personagens, bem como o pouso arriscado, a tripulação dedicada, o piloto hábil que dirige qualquer negócio, o herói que se sacrifica, etc.. E um to be continued no final.

Luiz Brás nos apresenta "Singularidade Nua", onde há um jogo de gato e rato entre um oficial e três irmãos gêmeos.

Fechando o Portal está "Esquizóide", de Ivan Hegemberg. O conto descreve um ser em estado de confusão mental. As referencias cruzadas e aparentemente ilógicas e caóticas de um provável doente mental estão muito bem caracterizadas.

A revista Portal Stalker consegue dar um bom panorama da Ficção Científica brasileira que está sendo produziida hoje.

Para maiores informações sobre o Projeto Portal, clique aqui.