sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? – Blade Runner para ler com prazer


Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? 
Título original: Do androids dream of eletric sheep?
Autor: Philip K. Dick
Tradução: Ronaldo Bressane

Sinopse: Rick Deckard vive numa Terra decadente, onde após uma guerra nuclear, boa parte dos humanos emigraram para colônias espaciais e a maioria dos animais morreu, transformando-se em produtos de luxo. Seu sonho é possuir um animal verdadeiro. Sua profissão é “caçador de recompensas” e ele persegue e “aposenta” androides. Recebe como missão perseguir e aposentar seis androides fugitivos de Marte e vê nesta caçada a possibilidade de realizar seu sonho de ter um animal verdadeiro. Mas, as coisas não saem exatamente do modo que deseja.

Durante muito tempo tive receio de ler o livro pois tinha medo de ver destruída a minha excelente impressão do filme Blade Runner, baseado neste livro ou que a minha visão do filme fizesse desgostar do livro.

Não aconteceu nem uma coisa nem outra. Como o próprio Philip K. Dick disse, após ver um trecho do filme ainda em produção, os dois trabalhos se complementam.

O filme dá uma dimensão maior aos personagens Deckard (o caçador de androides), Rachel (a androide quase – ou mais que – humana) e Roy Bat, o líder dos androides fugitivos.


Rachel, mais humana que androide

O Deckard do livro é uma pessoa comum, com uma vida medíocre e a única coisa extraordinária (que ele trata como algo muito burocrático) é sua profissão. Roy Bat apesar de sua inteligência e de certa forma sensibilidade, seria incapaz de proferir aquele discurso do final filme e Rachel do livro não consegue passar sua humanidade como no filme.

Deckard, frieza burocrática ao aposentar androides.

Por outro lado, no filme a preocupação metafísica – que é bastante intensa no livro – está quase ausente e mostrada de um jeito diferente (concentra-se na busca do “criador” por parte dos androides). No livro, há uma espécie de religião chama mercerismo, onde todos se conectam através de um caixa de empatia a Mercer, um messias que sofre para  que todos sofram juntos e compartilhem emoções.

Mercer é um velho que sobe uma colina e é apedrejado por inimigos invisíveis e as pessoas quando a ele conectadas sentem seu sofrimento e as emoções de cada pessoa envolvida. Aliás, a empatia é o sentimento que distingue um ser humano de um androide e a busca por empatia é o que move os androides liderados por Roy.


Tanto no filme como no livro os androides buscam a transcendência

Está ausente no filme o programador de emoções de Penfield. É um aparelho em que você escolhe num menu o tipo de emoção que quer sentir no momento. Em geral, as pessoas “vestem” emoções convenientes, como alegria se estão em casa ou senso de responsabilidade profissional se estão indo trabalhar. Entretanto Iran, esposa de Deckard  (personagem ausente no filme) um dia, ao tomar consciência de sua condição de morar num mundo decadente, em vez de “felicidade” escolhe “depressão”, que segundo ela, era o que deveria estar sentindo realmente.

Há também a questão do “bagulho”. Na visão de Isidore (no livro um simples motorista que recolhe animais artificias com defeito) o bagulho seriam objetos inanimados que se multiplicam e destroem o mundo a sua volta, uma explicação ingênua para a deterioração entrópica do mundo em que está vivendo.

O mundo de Dick é um mundo onde o artificial expele o natural e hipocritamente destrói os androides, que paradoxalmente anseiam por humanidade. Isso também está no filme, mostrado de outra forma.


Um mundo onde o natural é expulso pelo artificial

Atenção Spoiler!

O ponto alto do filme é a perseguição dos androides no prédio onde mora Isidore. No livro há perseguição, mas sem a emotividade das cenas do filme e a morte de Roy é patética, como se fosse mais uma “aposentadoria” feita por Deckard.

O termo em inglês é “retire”, que significa também “retirar”. Em português não há esta ambiguidade. O segundo significado da palavra aposentar (colocar em um aposento) há muito não é utilizado. Nas versões do filme traduzidas (tanto dubladas como legendadas) a que assisti, o termo empregado é “remover”. O uso deste termo em vez de ser um eufemismo para “matar” coisifica o androide e acaba sendo mais forte que o inglês “retire”.

Na tradução do livro preferiu-se o termo “aposentar”, para manter a ironia original do texto em inglês, embora a ambiguidade seja intraduzível.

O livro se prolonga um pouco mais como um encontro em um deserto de Deckard com Mercer onde o caçador se descobre humano. Uma cena bem feita onde praticamente o imaginário e o real se reconciliam. 

O final também é “sem sal”. Decarkd volta para a casa e para sua esposa e apenas quer “uma longa e merecida paz”, que, em muitos idiomas, soaria como uma metáfora para morte.

Extras

O livro possui três adendos: uma carta de Philip K. Dick elogiando a adaptação e prevendo o caráter revolucionário do filme, sua ultima entrevista e uma analise do livro muito bem elaborada feita por Ronaldo Bressane.

Conclusão 

Realmente o livro e o filme se complementam e Blade Runner é uma das melhores adaptações para o cinema de um bom livro. 

Com certeza vale o conselho que normalmente aparece em publicidade de filmes: veja o filme, leia o livro e ouça a trilha sonora.

Nerd Shop

Livro: Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? Philip K. Dick,. Editora Aleph.
Filme: Blade Runner - O caçadore de Androides. Versão definitiva
Trilha sonora: Blade Runner. Vangelis. 

2 comentários:

  1. Gostei demais da sua resenha e fiquei feliz de saber que o livro não irá "estragar" a mensagem que o filme carrega. Na verdade amei o perfil reflexivo que cada versão tem: uma obra enriquece a outra.

    Me entristece não ver essas obras serem estudadas nos cursos de crítica literária. FC é um gênero narrativo muito rico e com obras de uma profundidade filosófica similar a de qualquer outro clássico.

    Lerei o livro sem medo de ser feliz, haha.

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    1. Obrigado Patrícia. Tem razão quanto a ver FC com uma riqueza igual às obras clássicas. De fato é, mas a postura "canônica" torce o nariz para fantasia, a ficção o policial, em suma qualquer literatura de gênero. Porém esquecem que a renovação vem desta literatura dita "marginal" que é desprezada.

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