O que faz um bom escritor de FC? Muitas coisas, mas a maioria dos que aconselham um autor iniciante é que boa parte do trabalho é transpiração, causada por uma exaustiva pesquisa do tema que o autor pretende tratar, sobretudo se optar pela vertente hard.
Recentemente, ao ler o livro Pelos olhos de Maisie, me veio à mente uma comparação, e resolvi explorá-la.
O romance em questão, foi escrito em 1897, por Henry James, irmão do psicólogo americano William James, e trata das relações interpessoais entre um casal de divorciados e, posteriormente os novos cônjuges, e a filha do casal, Maisie. A menina tem por volta de seis anos quando ocorre a separação. A guarda da criança é dada inicialmente ao pai. Depois, por um problema econômico, o pai foi obrigado a dividir a guarda com a mãe. A partir de então, Maisie deveria ficar seis meses com o pai, depois seis meses com a mãe. Este arranjo assemelha-se ao que hoje se poderia definir como "guarda alternada”.
Entretanto, intenção tanto do pai como da mãe era usar a menina para se atacarem mutuamente. Não há cônjuge amoroso, nem participação ativa da criança, que apenas se defende, inicialmente tentando participar do jogo de leva e trás e, posteriormente, mecanismos de defesa para evitar participar dele.
Podemos pensar em Pelos olhos de Maisie como um estudo de caso onde o autor, usando sua imaginação e sua observações para criar um ambiente propício para um “experimento” de ordem psicológica. Apesar de adotar com maestria o ponto de vista de uma criança, Maisie é uma menina idealizada, pois passa pela experiência aparentemente sem traumas, apesar de não sabermos em que adulto ela se tornou. O forte do livro está na descrição de todos os mecanismos de intriga usados pelos adultos através de uma criança, bem com o dos mecanismos de defesa montados por ela para superar a situação, isto tudo contado quase que exclusivamente no ponto de vista dela.
O livro foi escrito dentro de um período literário, o Realismo, e de um conceito, o Romance Experimental, por um escritor de importância para o período, Henry James. O Realismo enquanto escola literária busca em oposição ao Romantismo mostrar o cotidiano e a realidade sem idealizações ou maniqueísmos. O Romance Experimental, criado por Emile Zolà, pretende transformar a obra literária num experimento, onde os personagens estão num ambiente sob controle do autor. No romance experimental pretendia-se criar um ambiente ficcional onde o autor poderia experimentar sua tese, baseado nos conceitos da sociologia, genética e psicologia. Quando isto é levado a extremos, recebe o nome de Naturalismo.
Os autores realistas e naturalistas buscavam criar suas obras dentro de princípios científicos rígidos, fazendo pesquisas exaustivas na literatura científica e observando os personagens e ambientes que dariam vida ao romance que estavam escrevendo. Por exemplo, se a questão a ser vista era prostituição, o autor iria visitar um ou vários prostíbulos e entrevistaria freqüentadores, prostitutas, policiais e outras pessoas presentes neste meio.
O que faz hoje um escritor de FC hard? Se for competente, a mesma coisa! A única diferença são as ciências envolvidas, mas a filosofia norteadora é a mesma. Num bom romance de FC, o autor também cria um laboratório virtual onde um fenômeno afetará um grupo de personagens “em condições controladas”, como teorizou Zolà.
Não é por acaso que a FC tenha surgido no final do século XIX, já que a literatura da época refletia as profundas transformações econômicas, políticas, sociais e culturais que estavam correndo, causadas, sobretudo, pela Revolução Industrial, os avanços na ciência e tecnologia, não só as Quimica e Física, mas também a Biologia (com o Darwinismo), as recém criadas Sociologia e Psicologia e o surgimento de forma polêmica da Psicanálise, que começou a mexer com tabus sexuais.
Na economia temos o crescimento do capitalismo que cria complexos industriais. E este crescimento faz com que classe operária urbana cresça, surgindo o conceito de “proletariado” e trazendo à tona ideologias socialistas, culminado com Marx, que revoluciona a teoria econômica.
Esta efervescência social e cultural fez com que os escritores buscassem outra forma de fazer sua arte. Segundo Paulo Cesar Alves, em seu artigo Narrativas Antropológicas e Literatura:
O movimento realista-naturalista tem algumas características marcantes. Como observou Zola (O romance experimental, 1880), é “a fórmula da ciência moderna aplicada à literatura”.(...) Essa ânsia da verdade aproximou a literatura ao campo da ciência. O intelectual da “belle époque”, em sintonia com a época, caracterizou-se pela sua exaltação a ciência e a moderna tecnologia, havendo um grande interesse e devoção pelas coisas materiais. Os romances ressaltavam as bases físicas do pensamento e da conduta humana. A biologia e a psicologia foram as ciências que exerceram profundas influências na nossa elite intelectual. O darwinismo e a idéia de evolução tornaram-se quase que uma religião para eles.
Henry James (1843-1916), é um importante escritor de origem americana deste período. Sua posição em relação à literatura é expressa na seguinte frase: “A única razão para a existência de um romance é a de que ele tente de fato representar a vida.” Portanto, segundo ele próprio, Henry James está inserido no contexto da escola realista de literatura, num estilo chamado de Romance Experimental, criado por Emile Zolà.
No Brasil, este período é bastante fértil, tendo nada menos que Machado de Assis, como o escritor mais representativo do período.
Machado de Assis tem sido alvo de alguns livros de ficção alternativa, o que de certa forma o coloca em evidência fora do círculo dos estudantes de vestibular. Embora não tivesse feito um romance experimental, Machado de Assis é considerado um expert da alma humana e pode-se dizer que escreve romances de natureza fortemente psicológica, sobretudo Dom Casmurro. Uma das forma de analisá-lo é ver a evolução do personagem. Primeiro, é o ingênuo Bentinho. Depois, se transforma em Bento Santiago, cujo segundo nome pode ser decomposto em Sant-Iago (Iago, o personagem que leva Otelo ao crime), o homem corroído pelo ciúme. Termina como Dom Casmurro o homem amargo que vive sob torturante dúvida.
Se ele vivesse hoje, talvez escrevesse FC. Ele levava jeito pra coisa.
Excelente artigo, Álvaro. Muito ilustrativo.
ResponderExcluirInteressante você levantar essa questão, Álvaro. Uma personalidade importante da FC americana, o escritor e acadêmico James Gunn, partilha da opinião de que haveria uma identidade entre o naturalismo e a ficção científica.
ResponderExcluirMuito bom o artigo, Alvaro.
ResponderExcluirParabéns pelo artigo, abrangente e conciso ao mesmo tempo. Um abraço de sua amiga Sonia.
ResponderExcluir:)
ResponderExcluirInteressante!
ResponderExcluirNão penso como Henry James que:
"A única razão para a existência de um romance é a de que ele tente de fato representar a vida."
Mas sim que:
Uma razão essencial para a existência de um romance, ou novela, é o facto de tentar criar e recriar vidas.
Grata pela partilha da análise!