Lilith - imagem medieval |
Fruto Proibido
Tenho diante de mim uma maçã. Vermelha e cheirosa. Apetitosa.
Neste preciso momento eu tenho que decidir se a mordo ou não. Grande bosta, você dirá.
Talvez se eu lhe contar a história do porquê de minhas dúvidas, você me questione menos ou resolva me virar as costas de vez.
Antes que você me julgue, confesso que sou ateu, ou era até uma semana atrás, quando meu avô morreu.
Não. Não! Não é o medo da morte ou a emoção da ida de um ente querido que me fez mudar minhas convicções. Foi por algo que aconteceu dois dias antes de ele morrer e tem a ver com esta maçã...
Fui o dia em que Angélica, a garota por quem estou apaixonado, foi estudar matemática comigo, lá em casa. Ser o cara que mais entende de matemática no terceiro ano tem lá suas vantagens.
Mas naquele dia meu "estudo" foi interrompido. Minha mãe chamou-me discretamente e pediu para eu dispensá-la. Meu avô estava mal. As crises morre-não-morre do velho estavam me enchendo o saco. Porém era sempre a mim que ele chamava, no momento em que sentia a presença da Morte.
Mais uma vez o caminho da sedução da moça dos cabelos ruivos havia sido interrompido por um velho que devia ter ido em paz há muito.
Mas ele gostava de mim, e eu dele, de certa forma. E já estava começando a ficar habituado com este morre-não-morre do velho. Mas aquele dia estava fadado a ser diferente e não foi porque ele acabou morrendo de vez alguns dias depois. Começou pela maneira como ele me recebeu.
Mal eu entrei no seu quarto e fechei a porta, ele levantou-se da cama de um salto como nunca estivesse estado doente. E a pergunta que ele me fez logo em seguida foi mais atordoante:
— E então? Aposto que você ainda não conseguiu transar com a garota, não é?
Gaguejei, mais pelo inusitado da pergunta do que pelo embaraço:
— N-n-não.
— Ah! Como eu já sabia. Você e Angélica são ingênuos. Demais. Como seus ancestrais de cinco mil anos! Ela é bonita, atraente e não se dá conta disso. E você fica todo cheio de melindres pra se aproximar dela.
— ?
— E tem mais outra garota que desperta seu interesse, Lilian. Ela é um arraso. Muito bonita e senhora de sua beleza. Sedutora. Se veste provocantemente e parece se divertir em plantar esperanças na cabeça de todos os rapazes sem nunca lhes realizar as fantasias.
— Como você sabe disso tudo?
— A palavra é essa. Tudo. Eu sei de tudo. Sei por exemplo que você ontem cabulou aula para ir ao cinema. E você tinha razão: o filme era bom e as aulas eram péssimas.
Ele contou outros fatos de minha vida em detalhes, desde minha infância, cobrindo pequenos delitos que julgava serem só de meu conhecimento. Mas não foram só fatos. Foram também pensamentos íntimos, dúvidas, certezas, fantasias. Olhei para ele com uma cara que denunciava um misto de admiração, espanto e dúvida, e antes que eu lhe perguntasse qualquer coisa, ele me respondeu:
— Eu sou Deus.
Gargalhei.
— Deus?
— Me esqueci. Minha forma humana tem limitações. Velhos são esquecidos. Esqueci que você é ateu. Então, quer que eu prove? O que você quer que eu faça? Algo do nada?
Com um gesto de mão fez surgir diante de mim uma maçã. Esta maçã. Ela
ficou flutuando no ar diante de mim, girando. Eu olhava incrédulo.
— Pegue-a.
Com alguma hesitação, peguei. Sólida.
— Ainda não acredita? Faz parte. Só Adão não manifestou descrença, por que ele não tinha com que me comparar, mas depois dele, todos os homens, até os com muita fé, até Buda, Krishina e Cristo, em algum momento duvidaram de mim.
Continuava incrédulo e perguntei:
— Por que então você escolheu este velho que aqui está?
— Seria melhor um moço? Uma mulher? Um quarentão? Uma criança?
Diante de mim passou por todas as transformações, voltando por fim a ser meu avô.
Deus ou não, ele era um ser extraordinário. E talvez perigoso. Mil hipóteses passaram pela minha mente: alienígena, demônio, mago, um simples hipnotizador, eu ter enlouquecido ou até ele ser mesmo Deus. Como se estivesse lendo meus pensamentos ele os interrompeu:
— Não sou um demônio, nem isto tudo é um truque. Sou mesmo Deus. Você terá agora que fazer um salto de fé e não farei mais nenhuma demonstração. Não espero que acredite em mim de pronto. A fé sem questionamentos gera intolerância e disto estou farto.
Gostei destas palavras, mas ainda duvidava (e duvido) de ser ele mesmo Deus. E, mesmo que ele fosse, ainda havia mais uma pergunta a ser feita:
— Por que eu?
Meu avô (Deus?) sorriu:
— Você é um novo Adão.
— Esperei cinco mil anos até que este momento chegasse para corrigir um erro.
— Mas Deus não erra...
— Sim... e não. Eu escolhi o caminho do erro para evoluir. Criei a incerteza. Um lugar escuro onde jogo meus dados e não vejo o resultado. Dentro desta incerteza, criei o Homem. E eu esperava que Adão realmente comesse aquele fruto. Me desobedecendo mesmo. Mas as coisas não saíram como eu queria (e isso foi bom, pois foi fruto da Incerteza). Lilith, a mulher que criei antes de Adão e Eva, tinha como missão seduzir Adão e precipitou tudo, fazendo que Adão comesse o fruto verde.
— Por que esperava que ele desobedecesse?
— Na desobediência, o Homem descobriria seu caminho.
— Explique melhor este história do fruto verde e Lilith.
— Criei Lilith para seduzir Adão, e Eva para ser sua companheira. Lilith veio antes dos dois, feita de barro como Adão. Uma Mulher belíssima. Confiei-lhe os segredos de meus planos e dei-lhe a missão. Só que eu errei a mão na paixão ao criá-la.
Paraíso Perdido - Salvador Dali |
"Em Adão e Eva errei a mão na malícia. Eles eram inocentes demais. Lilith percebeu isso, tentou Eva e fê-la tentar Adão. O fruto ainda estava verde. O Conhecimento do homem nasceu imperfeito. Arte, religião e ciência ficaram unidos apenas por tênues vínculos.
"E agora tenho que corrigir isso. Aqui está diante de você o fruto da ciência do bem e do mal. Dentro de 15 dias estará maduro e você poderá comê-lo. Ou não. Pode comê-lo agora, nunca comê-lo, comê-lo podre, ou na hora certa. Cada uma destas ações trará um benefício e um malefício para a Humanidade. Minha ordem é comê-lo maduro."
Olhei atônito para a maçã, pensando em tudo que ele me disse. Após alguns segundos perguntei:
— Por acaso Angélica é a Eva destes tempos? E Lilian é Lilith, não é?
— Perfeita dedução, meu caro Adão (creio que posso chamá-lo assim). Creio que você já sabe tudo o que precisa saber. Assumirei o papel de avô doente e morrerei daqui a dois dias.
De fato isto aconteceu, e eu estou aqui ainda com o Fruto da Ciência, do Bem e do Mal, verde (a aparência de fruta madura é apenas uma ilusão), com a possibilidade de executar qualquer uma das ações. E com a questão da desobediência na minha cabeça. Preciso de um conselho seu. Depois de tudo o que você ouviu, que devo fazer, Lilian?
Este conto faz parte do livro Sombras e Sonhos, publicado pela Balão Editorial.
Não pergunte pra Lilian! Nãão!
ResponderExcluirO ser humano está sempre tendo que lidar com um desconhecido que o ultrapassa. Isso é o que tanto o apavora e angustia.
ResponderExcluirDeus quis corrigir seu engano mas deixou o pobre do humano na mesma sina.
Gostei muito do conto.
Parabéns
Sonia
O nome de Lilian deve ser provavelmente uma alusão aos Lilins os filhos de Lilith (Sucubus e Incubus)olha a questão do fruto... faz o seguinte da pra alguém, se ele(a) comer na hora errada você bota a culpa das desgraças nele, se der tudo certo você diz que foi você quem deu o fruto e fica com boa parte dos creditos.
ResponderExcluirÉ isso que da, entregar uma fruta dessa para um brasileiro =p